O Panóptico e o debate sobre direitos digitais, segurança pública e racismo no Brasil

Em 2019, 184 pessoas foram presas no Brasil com o uso do reconhecimento facial e destas, 90% eram pessoas negras, presas por crimes sem violência. A partir deste número estarrecedor, fruto do monitoramento que realizei com base em notícias e informações dos sites das secretarias de segurança pública e polícias, o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania – CESeC cria O Panóptico. O projeto tem três frentes que se alimentam e se complementam.

O eixo da pesquisa busca por meio de investigação detalhada caracterizar a adoção dessas tecnologias biométricas pelas polícias brasileiras. Quem está usando? Quais são os protocolos e procedimentos padrões? Quanto foi investido e quem investiu? Quantos são os impactados diretamente por essas tecnologias?

Perguntas que podem parecer simples para qualquer país que desenvolva políticas públicas com base em evidências e que persiga o bom uso do dinheiro público e a promoção de justiça para todos. Não é o caso brasileiro. As polícias e instituições do Sistema de Justiça Criminal têm histórico desabonador no que tange a transparência e, consequentemente, não chegam a prestar contas à sociedade de suas ações de forma satisfatória. É neste ambiente institucional que as tecnologias de reconhecimento facial são inseridas no contexto brasileiro.

Não surpreende que, no segundo dia de atividade do projeto piloto em Copacabana (Rio de Janeiro), as câmeras tenham reconhecido uma mulher erroneamente e, mais grave, a procurada já estava cumprindo pena em regime fechado. Soubemos posteriormente que o banco de dados utilizado na busca de procurados estava desatualizado e que os gestores públicos do projeto tinham ciência deste fato.

O segundo eixo de atuação do Panóptico derivou-se da constatação de que o campo dos Direitos Digitais, da Segurança Pública e da luta contra o racismo pouco dialogavam, apesar da evidente intersecção que o reconhecimento facial promove entre as três áreas de atuação. O ponto crucial aqui é a mudança que a inserção de jovens negros e negras imprimiram em várias áreas do conhecimento e atuação. Essa onda de negros e negras que adentraram de forma relevante os cursos de graduação e pós-graduação, na qual eu me incluo, só foi possível graças às décadas de atuação dos movimentos negros, seus ativistas e intelectuais.

A mudança (mesmo que ainda insuficiente) do perfil dos universitários brasileiros provocou também uma mudança na agenda das questões de análise, nas metodologias de pesquisa, nos arcabouços teóricos e conceitos explicativos. Esse movimento se fortaleceu e, conquistado seu espaço e sua importância, se impôs aos debates. “Nada de nós sem nós” é uma fala frequente que deixa claro que não iremos retroceder.

Houve, e ainda há, reações por parte de organizações que teimam em travar a engrenagem da História. Mas há também aquelas que, ao reconhecerem a inevitabilidade da presença negra (pessoas, ideias, metodologias, cosmovisões etc.) no debate público, se permitiram transformar. A velocidade em que o processo ocorre não está a altura do atraso intelectual que os séculos de exclusão da população negra dos espaços de debate e de tomada de decisão provocaram. Mas, seguiremos.

Por fim, de pouco vale a geração de informação e a criação de novos espaços de debates se não houver comunicação eficiente, que busque não só impactar o debate entre os grandes especialistas e importantes instituições, mas também o público em geral. Esse é um dos maiores desafios, mas também um dos mais urgentes.

Essas são as frentes que buscamos atingir no Panóptico, esse projeto que em menos de dois anos de existência já conseguiu dar contribuições relevantes no tema do reconhecimento facial e segurança pública no Brasil. A Menção Honrosa no Prêmio Artigo 50 da DataPrivacyBr é um reconhecimento dos nossos esforços e mais um indicativo de que nosso trabalho tem atingido de alguma maneira os seus objetivos. Seguiremos dedicados à ampliação do debate sobre direitos digitais, segurança pública e racismo no Brasil. Contem conosco.